quinta-feira, 10 de junho de 2010

Intimidade e Interioridade



O meu corpo e o seu interior

Este artigo irá reflectir sobre o pensamento que José Gil expõe a cerca de interioridade no seu livro Metamorfoses do Corpo. O local físico da alma é uma questão posta pelo filósofo e será aqui tratada. Ainda relativamente à interioridade e juntando ao tema a intimidade, será exposto o método de trabalho da coreógrafa Pina Baush que tem como eixo do seu trabalho a interioridade revelada pelo corpo.
Relativamente à interioridade a grande questão colocada por José Gil é: “aonde se situa o interior?” [José Gil, in Metamorfoses do Corpo, 1997, p.154]. A nível exterior todo o corpo é expressivo, principalmente o rosto, mas e a nível interior? Se existe um exterior tem de existir um interior mas este interior não está num sítio especifico do exterior, nem sequer está em sítio nenhum físico porque é espírito ou alma. Então, como é que o nosso olhar vê o espírito do outro? Para um interior pertencer a um exterior, e se este exterior se insere num espaço específico, então, também o interior se vai inserir nesse mesmo espaço. Logo, o nosso interior situa-se no nosso corpo.
Quando olhamos para o corpo de uma pessoa não vemos só o exterior dessa pessoa, não olhamos simplesmente para um corpo, vemos também o interior, e para onde olhamos para ver esse interior? Embora não consigamos situar a alma em sítios específicos como na cabeça ou no coração temos de partir do princípio que a alma está num lugar para onde possamos olhar, caso contrário falaríamos com um corpo inanimado. Quando falamos com outra pessoa fazemos-nos ouvir, portanto, por um lado é como se falássemos para os ouvidos. No entanto, o que nos compreende não são os ouvidos mas sim o espírito. Então, para sermos entendidos juntamos à palavra o olhar, olhamos para o olhar do outro tentando alcançar o seu interior. Também com gestos como um abraço tentamos alcançar o interior. Assim, José Gil conclui que o interior não é na superfície do corpo mas existe como uma continuação dessa superfície. Olhos, boca, poros da pele, ouvidos, todos os orifícios são como uma porta para a nossa alma. O interior é assim cada uma das partes do exterior que funcionam como acessos mais ou menos directos da alma.
A imagem do local onde se encontra o “alter ego” do outro tende a situar-se numa zona do espaço específica que é dento da cabeça sem ser propriamente num sítio específico como no cérebro. A nível da percepção do “eu” de cada sujeito, este deve-se encontrar atrás do rosto , funcionando como um ecrã que faz a separação entre o exterior e o interior. José Gil conclui que “o sujeito da percepção situa-se no limite, na zona fronteiriça entre o interior e o exterior.” [José Gil, in Metamorfoses do Corpo, 1997, p.154]
Torna-se pertinente neste artigo reflectir sobre os métodos da coreógrafa alemã Pina, criadora do conceito dança-teatro, que desde sempre tem vindo a trabalhar questões relacionadas com a interioridade. Explora a cima de tudo a vida, as pessoas e aquilo que mexe com as pessoas.
Pina Baush tenta sempre conciliar a dança com aquilo que sente e que deseja exprimir e por vezes, aquilo que sente não se traduz em dança mas sim em movimentos mais simples que exteriormente podem não parecer dança mas que para ela é dança. Afirma: “Dentro das pessoas existe muita dança, até quando não se mexem.” [Leonetta Bentivoglio, in O teatro de Pina Baush, 1991, p.13].
O seu método de trabalho é também ele muito ligado à interioridade. A base dos seus espectáculos nasce sempre a partir de perguntas que ela faz aos bailarinos e eles respondem-lhe e mostram-lhe coisas. A elaboração dos movimentos é algo que se faz depois. Portanto ela trabalha do interior para o exterior. Faz aos bailarinos perguntas muito pessoais sobre os seus carácteres e sobre as suas vivências. Os espectáculos de Baush nascem da junção de algumas destas respostas, depois juntam-se fragmentos e o espectáculo acaba por tomar rumo desta forma.
Baush afirma que os seus espectáculos não começam do início para o fim mas sim do interior para o exterior. Até na escolha dos bailarinos a coreógrafa procura pelo interior. Ela não os escolhe por dançarem bem ou mal mas escolhe-os pelos olhos, alguém que lhe desperte curiosidade. Gosta de bailarinos tímidos e diz que essa é uma característica comum dos seus bailarinos.
O caminho da coreógrafa é em direcção da descoberta da natureza criativa mais profunda de todos os seus bailarinos. É uma busca contínua de naturalidade e de comportamento que se exprime sem qualquer postura social ou cultural. São pelo menos dois meses de ensaios com perguntas. Ela faz os seus bailarinos descobrirem-se a si próprios, ao responderem às perguntas dela descobrem por vezes novas coisas em si e sobre si próprios. As respostas podem ser dançadas, faladas, escritas, gesticulada. Este método, por ir tanto ao interior de cada um, a nível emocional tem riscos e os bailarinos por vezes não respondem a determinadas perguntas que lhes podem tocar muito fundo. Às vezes responderem a certas questões são esforços quase insuportáveis pois são muito dolorosos,. Sentem-se atingidos com as perguntas.
Por vezes as imagens dos espectáculos nascem de sonhos de bailarinos. Ilustram com simplicidade e evidência sensações e emoções narrando experiências autênticas, profundas e pessoais. Muitas vezes são os próprios bailarinos por sua iniciativa vão ter com a coreógrafa e mostram-lhe novos movimentos ou qualquer coisa nova que aprenderam e muitos dos materiais utilizados nos seus espectáculos nascem directamente das experiencias de vida dos bailarinos. Para todos estes bailarinos o trabalho e a vida coincidem.
Não é só em termos de interioridade que o trabalho de Pina Baush é pertinente para este artigo, mas também a nível de intimidade. Para poder alcançar o interior dos seus bailarinos, Baush tem de criar uma relação de grande intimidade com eles. Para eles lhe responderem a certas questões pessoais já tem de haver um certo nível de à vontade e de intimidade. Esta intimidade é algo que se vai criando constantemente, visto que é um grupo de pessoas que convive diariamente e muitas vezes em digressão.
As minhas imagens são referentes a um workshop de dança em que participei em 2003 com o tema “improviso”. Foi um solo de dez minutos em que me senti muito exposta pois ao improvisar dançando não estava a representar nenhuma personagem. Talvez por isso os meus movimentos tenham começado por ser abertos e grandes e tenham terminado fechados e pequenos. Por experiência própria posso dizer que a improvisação no teatro é muito menos expositiva que a improvisação na dança. No teatro é fácil, é pensar numa personagem e improvisar palavras, gestos, atitudes a partir daí, na dança somos nós próprios que nos expomos. Neste ponto estou de acordo com Pina Baush. Embora o seu trabalho esteja muito ligado ao teatro, Baush prefere trabalhar com bailarinos em vez de actores, diz que os bailarinos são mais verdadeiros e mais naturais e isso vai de encontro à sua procura da verdade e simplicidade nas pessoa. Os actores acabam sempre por representar enquanto que os bailarinos mostram-se tal como são e em palco são eles próprios. Mesmo a nível de voz, a coreógrafa diz que num actor por vezes parece que aquela voz não vem daquele corpo e num bailarino ele fala mesmo com a sua voz.
Neste solo senti que toda a minha interioridade estava toda à vista, pois tive de recorrer a imagens interiores, sensações e lembranças, para a partir daí criar movimentos. À semelhança do método de Pina Baush, o que funciona aqui é o trabalhar do interior para o exterior, e a nível de concepção de movimentos improvisados não consigo conceber outro método.
A nível técnico a imagem não é boa porque foi filmada com uma câmara fotográfica.. A repetição é algo muito utilizado nas coreografias de Pina Baush, talvez para reforçar uma ideia, um movimento ou simplesmente para criar um movimento complexo a partir de vários movimentos simples. Assim, para fazer uma ponte entre o seu trabalho e as minha imagens aqui apresentadas, em termos de montagem utilizei muito as repetições. O outro motivo que me levou a repetir determinados movimentos foi precisamente para reforçar a minha exposição, para tentar de alguma forma transmitir como foi possível sentir que a minha interioridade estava tão à vista.
Assim, constata-se que a interioridade, embora não seja directamente visível, aparece em gestos, palavras, acções, e embora esteja protegida por um exterior é ao mesmo tempo muitas vezes denunciada por esse mesmo exterior. Por outro lado é essa mesma interioridade que manipula o exterior de cada um. Por ser um prolongamento do exterior não se desliga do mesmo. Pode-se concluir que por vezes para chegar ao interior do outro é necessário um certo nível de intimidade, não basta olhar, como nos mostra Pina Baush com o seu método, mas outras vezes, como no caso do meu solo de improvisação basta olhar para ver grande parte da minha interioridade. É assim um aspecto complexo perceber os limites do interior e do exterior, em que ponto começa um e acaba outro.

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